“O que eu mais gosto no amor é que, quando é a sério, cabe tudo lá dentro. A paixão, o desejo, o pulsar das almas e a serenidade dos pensamentos, a vontade de construir outra vez o mundo à imagem e semelhança do que sentimos, a paz dos regressos e a poesia das folhas brancas que cada dia esperam a doçura das palavras e a certeza das ideias.
O amor é mais do que querer, desejar, sonhar e amar. É partilhar a vida inteira, numa entrega sem limites, como mergulhar no mar sem fundo ou voar a incalculáveis altitudes. O amor é muita coisa junta, não cabe em palavras nem em beijos, porque se leva a si mesmo por caminhos que nem ele mesmo conhece, por isso é que quem ama se repete sem se cansar e tudo promete quase sem pensar, porque o amor, quando é a sério, sai-nos por todos os poros, até quando estamos calados ou a dormir.
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Mais do que uma paixão, que sobressalta a alma e extenua o corpo, e às vezes se consome a si mesma e desaparece sem deixar mais rasto do que um gosto amargo na boca e a perplexidade de tudo o que é absurdo, o amor sabe ser calmo e sereno, não tem medo nem dúvidas, nem se assusta com a vida e trata a rotina com cerimónia, para nunca a deixar chegar por perto e a minar com o seu espectro. Não, o verdadeiro amor sabe que pode fazer tudo para tornar a vida fácil e quase perfeita, como ela deve ser.
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O amor a sério entre duas pessoas é como um cofre sem nada lá dentro, que se esvazia todos os dias e depois se volta a encher, sem medo de ladrões nem de assaltos, porque é protegido por si próprio. Ninguém lhe sabe dar o verdadeiro valor, porque o amor não tem preço e por isso não se pode roubar.
E quem ama, até pode estar apaixonado, mas nada chega ao amor quando o amor chega e entra na nossa vida, muda tudo e tudo na vida muda. O que havia antes apaga-se, deixa de ter sentido, reduz-se à sua insignificância de passado que já passou.
Amar alguém é começar a viver outra vez, terminou-se uma viagem e começa-se. Esquecem-se as desilusões, o medo de falhar, e aqueles que nos amaram ou que nós pensamos ter amado morrem sem dor dentro dos álbuns de fotografia e molhes de cartas desmaiadas, já sem voz nem lugar.
O amor é regenerador. Faz-nos vibrar como se fosse a primeira vez, pinta de claro as casas e as almas, junta sonhos num sonho comum, faz dos ideais coisas palpáveis e possíveis, deita-se cansado mas acorda novo e fresco, perpetua-se em palavras e gestos, sem nunca se desvirtuar.
Mas o amor a sério, o amor para durar uma vida, é quase secreto, quase escondido, quer-se discreto e comedido, independente e inconformado.
O amor não tem nenhuma receita milagrosa, é como um prato que se faz com alma e coração, a cabeça e o corpo, tudo em doses bem medidas, muita paz e serenidade. E quem o conhece, sabe que depois de ele nascer, é como uma criança que precisa de aprender tudo: falar, escrever, rir, respeitar, ir à escola e crescer, ouvir e às vezes não ter, lutar e nem sempre conseguir, chorar sem ninguém ouvir, mas nunca desistir de ser a maior e mais importante riqueza que uma pessoa alguma vez pode vir. E ter.”
“O truque está na entrega. Um amor sem entrega não é amor, é um compromisso que se faz com a vida e consigo próprio, mas estes compromissos, em que as pessoas embarcam na esperança de encontrarem uma vida estável e calma, transforma-se com o tempo na mais entediante e vazia das existências. Como tudo o que não é genuíno, rapidamente perde o brilho, a graça e a vida. O amor verdadeiro, não. È como uma árvore que cresce muito devagar, sem pressa nem objectivo, e que por isso mesmo não precisa de razões para existir. Por isso, quando oiço as pessoas dizerem: gosto de fulano tal porque tem estas e aquelas qualidades, desconfio sempre. Não se ama pelas qualidades. Nem por isto ou por aquilo. Ama-se simplesmente, e sobretudo ama-se apesar deste e aquele defeito que às vezes até podem ser um espinho na nossa vida. Porque para quem ama um pequeno espinho é sempre reduzido à sua verdadeira insignificância e nunca se deixa que ele se transforme num problema.”
As crónicas da Margarida – Margarida Rebelo Pinto