Terça-feira, 3 de Julho de 2007

Saber parar

“Sentado numa cadeira em sua casa, bem em frente à janela da sala fuma um cigarro, tendo o céu como única vista. Respira fundo, passa-lhe pela cabeça voltar a fumar um charro, um simples charro. «Que bem que me sabia!» - diz para si próprio - «E é assim que toda a merda começa também...» - continuou ele em discurso interno. Irrita-se quando pensa naqueles casos, raros, que conseguem gerir com mestria a sua dependência. Sabem parar, abrandar, conhecem os limites de si próprios. Irrita-se quando pensa naqueles que, depois de experimentarem tudo e mais alguma coisa, conseguem estabilizar nas drogas leves. Irrita-se quando sabe que ele não pertence a nenhum destes grupos. Ele sabe que não sabe parar. Sabe também que quem o recuperou lhe pediu para manter essa sabedoria sempre presente.
Faz-me feliz – Sérgio Cunha

 
 
 
“Vê lá o que andas a fazer com a tua vida. Deves fumar quase como um sacramento, com respeito. E, como em tudo o que é tomado em excesso, é mau. Se calhar, o melhor mesmo é ficares uns tempos afastado disso, assim quando voltares a fumar, até te sabe melhor!
...
O tipo estava todo queimado! Há pessoas que julgam que lá por a canábis ser uma droga pouco viciante, podem fumá-la a toda a hora sem que isso tenha consequências.
...
Nas campanhas de prevenção da toxicodependência é costume encher-se a boca com clichés como o de as drogas serem más. Isso é uma mentira escandalosa. As pessoas não são estúpidas a esse ponto. As drogas não são más, bem pelo contrário: são verdadeiramente formidáveis, abrem a consciência para visões e sensações muito mais impressionantes que a vida quotidiana de qualquer um. Por isso mesmo, por serem muito boas, é que são perigosas, sobretudo nas mãos de irresponsáveis.”
...
Eu ouvia-o e pensava na minha primeira vez com a canábis. Nunca mais fora o mesmo. O mais impressionante nessa droga é que, ao contrário de outras, como a cocaína, a droga hedonista por excelência, ou o álcool, o grande e interno intoxicante de massas, que apenas fazem um individuo sentir-se bem, a canábis muda para sempre a forma de pensar e de ver o mundo. Nesse sentido, é uma droga visionária, independentemente da posição que se tenha sobre os seus benefícios e malefícios.”
...
- O que é que aí tens? Pergunta o Faria, aproximando-se de mãos nos bolsos.
- Haxixe – respondi.
- Ah, isso não podes fumar aqui. Estás proibida. Essa porcaria faz mal à saúde! Sabes como é que eles fazem para que o haxixe pese mais? Mergulham as placas em banho-maria até que fiquem com uma textura mole e moldável. Aí, misturam toda a porcaria que vier à mão: farinha Maisena, caldos Knorr, especiarias trituradas... Tudo e mais alguma coisa! Envolvem a mistela toda com a mão numa bola, voltam a moldá-la em forma de pequeno tijolo, enfiam tudo no forno por alguns minutos e já está! O dobro do tamanho, o dobro do lucro para o traficante! E suponho que cada um dos múltiplos intermediários se sente tentado a fazer esta operação, podes imaginar a mistela que para aí vai!
- O Faria observou o meu esgar enojado e continuou:
- Isto para não falar do amoníaco! Ah! Aposto que não sabias do amoníaco que muitas vezes se adiciona, para que o fumo irrite mais as paredes dos pulmões e penetre mais na corrente sanguínea, dando a ilusão de que essa mistela é mais forte do que na realidade é.
Após uma pausa para apreciar o meu ar de desilusão, piscou-me o olho e convidou-me a ir atrás dele.
Segui-o pelo terreno que se estendia em volta das casinhas, até que chegámos a um recanto onde o matagal crescia até à altura de uma pessoa, mas situado numa zona mais baixa, que não era visívil a partir da casa. Afastou com as mãos a densa muralha vegetal e mostrou-me o que ela ocultava, perante o meu olhar incrédulo.
O mato escondia uma frondosa e verdejante plantação de marijuana, que retribuía as carícias da brisa da tarde com o seu odor hipnótico.
- Que sejas muito bem-vinda ao jardim da alegria. Como vês, não há necessidade dessa trampa marroquina, que nem se sabe bem que porcarias pode ter misturadas. És minha convidada, se te apetecer fumar, basta pedires-me.
...
- Não tens receio de ser canado com as plantas? Tanta gente que passa pela tua casa, há sempre o risco de alguém ver e denunciar! – perguntou o Francisco.

- Elas estão bem disfarçadas, como podem ver. O mais complicado é o cheiro que deitam, quando o vento o traz na direcção da casa, sobretudo na época da floração. De resto, apesar de a nossa lei proibir o plantio, acho que estou a fazer aquilo que está certo do ponto de vista moral. Ao plantar para mim e para partilhar com os amigos mais chegados, evito estar a alimentar os negócios sujos do tráfico de drogas. Digo mais: o maior golpe que poderiam dar no tráfico era permitirem o cultivo de pequenas quantidades de marijuana para autoconsumo. Eu, por mim, estou a fazer a minha parte por uma sociedade mais segura e mais limpa. É uma estupidez ilegalizarem uma planta como a canábis. O que eu faço, na minha casa e desde que não prejudique ninguém, apenas a mim me diz respeito. Ao longo de toda a história da humanidade, nunca houve uma sociedade tão obcecada com as drogas como a nossa. Por milhares e milhares de anos, o ser humano sempre teve uma relação normal com as plantas psicoativas, usando-as com respeito, em seu proveito.”

O elogio do fracasso - João Teixeira Freire

Clauclau às 00:07

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