Sexta-feira, 29 de Fevereiro de 2008
“Agora estou em Dublin, vim estudar literatura inglesa e francesa e iniciar convenientemente a caminhada necessária para ser escritor. Estou a estudar francês porque tive boas notas no liceu, porque adoro o som da língua, a delicadeza e a beleza que parecem desprender-se mesmo das frases mais simples, porque ouvi falar em Rimbaud através das canções de Van Morrison e Bob Dylan , e porque é uma língua estrangeira. Adoro dizer palavras em francês e estabelecer ligações de musicalidade entre elas, visage », paisage ». Tenho sonhos fabulosos com as criaturas feitas de seda que vivem dentro de mim. Levantam-se e flutuam no ar e às vezes, nos primeiros dias, sinto que os meus pés mal tocam no chão.”
Dizei uma palavra e eu serei salvo – Niall Williams
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Quarta-feira, 6 de Fevereiro de 2008
“E Jim tira-lhe o quadro das mãos e procura um sítio para ele em cima da cómoda, segurando-o com uma jarra de flores vazia de cada lado. Depois cinge Kate nos braços e aflora-lhe a pele delicada do rosto e com os lábios traça os contornos que viu revelados nas cores. Mas quando se beijam, enrolados um no outro, o seu amor torna-se desesperado por acção do que lhe corre por baixo. É como se nenhum toque, nenhum gesto ou afago estivesse livre do desejo de fazer dele algo mais do que é. Como se o amor que naquela altura fizesse com ela tivesse de ser não apenas feito de beijos e carícias ou mesmo de alguma coisa corpórea, mas antes de uma substância de espírito e fogo. Sonha com um amor capaz de salvar os dois, resgatá-los dos desesperos separados e da secreta solidão das suas vidas e ser, à falta de uma palavra melhor, transformador – a ideia de resgate sempre presente. Busca com a boca e com os dedos a maneira de fazer Kate feliz, como se a felicidade fosse uma construção mental ou uma fugaz invenção que se pudesse aprisionar e manter imune à erosão do tempo.
Jim e Kate estão deitados no sofá. As janelas curvas retêm pedaços do azul profundo do céu nocturno. O vento vem e vai por entre as árvores do jardim, arrancando-lhe furiosamente as últimas folhas. Não há luar. Na quietude que desce depois do amor, a pouca paz que sobrevém é frágil e leve e demasiado efémera. Estão deitados em silêncio no remoinho das coisas que as palavras não dizem, numa respiração pausada e leve que escutam contra o turbilhão que sopra lá fora.
Dizei uma palavra e eu serei salvo – Niall Williams
Domingo, 13 de Janeiro de 2008
“ Se estou apaixonado por alguma coisa, é pelas palavras e pelos livros, em que entro quando me parece possível no mundo de alguém. Nessa altura pouco me importa que esse alguém possa ser um fantasma, ou que os meus dias sejam passados nesse mundo irreal. E a experiência não difere da de uma criança que está doente de cama e passa o dia a ler histórias de aventuras, e adormece e acorda com as capas do livro pegajosas nas mãos, ou esparramadas sobre o peito adormecido. As pessoas de verdade e as coisas de verdade não têm a mínima importância, existindo apenas sob a forma de um som distante e abafado que chega do andar de baixo. É pois assim, neste mundo egocêntrico da imaginação, que passo os dias.”
Dizei uma palavra e eu serei salvo – Niall Williams
Quarta-feira, 9 de Janeiro de 2008
“Para o aniversário de Kate, em Abril, Jim pensa escrever-lhe um poema. A inspiração pode vir da falta de dinheiro – o que ganha mal lhes dá para sobreviver no apartamento do dr. Morgan, de renda especialmente baixa a troco do corte da relva, não lhe permitindo o luxo das coisas bonitas que se encontram nas lojas de Bedford Village e Chappaqua, onde toca uma sineta quando alguém entra. A pobreza é relativa, mas é suficiente para o deixar com uma sensação de vergonha, de inutilidade, que talvez a composição de um poema possa absorver. O problema é que há muito tempo não escreve nada. As últimas coisas que escreveu foram umas frases, peças soltas do que pode vir a ser alguma coisa, uns quantos fragmentos rítmicos que lhe andam a bailar na cabeça. Mas o poema propriamente dito nunca chegou a ganhar forma, como se, apesar de ele pronunciar as palavras e tentar exprimir o sentimento, não se desse o acto de transubstanciação. Pô-lo de lado.”
Dizei uma palavra e eu serei salvo – Niall Williams
Sábado, 5 de Janeiro de 2008
“Se Jim fosse outro, talvez nesta altura olhasse para trás e sorrisse ou assumisse uma expressão tranquilizadora para aliviar a tensão que se vai acumulando, mas não é pessoa para isso. Pensa que na absoluta solidão deste momento se joga uma partida decisiva. E que dentro de uma hora ou menos a sua vida estará para sempre mudada. Ela vai aparecer. De certeza. E ele vai colocar a mão – e a vida – na mão dela, acreditando, como manda a sua religião, na perenidade do amor, acreditando nele como um fim e um propósito e mesmo um destino; acreditando que a monotonia e o tédio da vida, de arranjar um emprego e ganhar o sustento, podem ser transformados por isso. E enquanto espera percebe que nada do que está a acontecer é normal, e que está num tempo e num lugar em que o amor se escreve com «a» minúsculo e que a fé que tem é uma espécie de exagero bizarro. Não quer saber. Será o sacerdote da paixão, da devoção. Kate Lynch é a primeira mulher que alguma vez amou. É a mulher a quem acha que o amor vai curar de todas as feridas, sem perceber ainda que é a si próprio que se quer curar pelo amor.”
Dizei uma palavra e eu serei salvo – Niall Williams
Terça-feira, 30 de Outubro de 2007
“- Percebeste a porra da ideia?
- O quê?
- O jogo inteiro. Sabes como é, um tipo cresce, arranja uma merda de um emprego, trabalha por um salário de fome, enfiado como um escravo num caixote de betão, cabeça e olhos no chão, sem dar pela passagem dos dias e das semanas e dos meses, faz uma porcaria qualquer de trabalho estúpido e insignificante durante horas a fio, acaba, sai, mete-se no trânsito, vai para casa, um tugúrio miserável e húmido de paredes finas como papel, paga a hipoteca, paga a pensão, gasta todos os míseros tostões para pagar isto e mais aquilo, cai na cama estoirado e adormece, e depois o quê? (...) depois acorda e volta exactamente ao princípio.”
Dizei uma palavra e eu serei salvo – Niall Williams
Segunda-feira, 29 de Outubro de 2007
“ Jim entra no quarto. Kate está sentada a chorar.
Vai sentar-se ao pé dela na cama. Afaga-lhe os cabelos e chama-a pelo nome. À luz prateada do quarto o seu espírito volteia como uma falena, em busca de soluções, e pensa, o «desgosto vem do facto de não vivermos a nossa vida. Não somos as pessoas que sonhámos vir a ser ou não estamos onde imaginámos estar quando passeámos pelas ruas nocturnas de Dublin.» Só nessa altura se apercebe de que o amor é uma realidade muito mais difícil do que parece nos livros. Não ganha o suficiente para comprar nenhuma espécie de liberdade. Não ganha o suficiente para libertar Kate das tarefas da rega e da monda no horto, para cumprir promessas silenciosas que lhe fazia quando a tinha nos braços e lhe prometia corrigir tudo que aos olhos dela estava errado.”
Dizei uma palavra e eu serei salvo – Niall Williams